Texto maravilhoso sobre beijo gay de amor à vida ! Confira :
Por íldima Lima
Dia desses, conversando à toa com minha amada avó materna, perguntei o que ela estava achando da novela. Ela, que sempre emite suas opiniões de forma certeira, disparou: “eu gosto... têm aqueles dois meninos que a gente fica torcendo que fiquem juntos, é um amor bonito, né? A gente até esquece que são dois homens...nem importa que sejam né? Importa o amor”.
A sabedoria nutrida pelo tempo, associada a uma certa pureza em viver num mundo muito veloz, com recursos e ferramentas tecnológicas que ela não domina e entende superficialmente, foi refletida naquela frase. Minha avó, no auge dos seus 86 anos, é uma mulher muito honesta. O que ela disse, da forma natural e quase desinteressada, resume perfeitamente o pensamento que tornaria o mundo um lugar mais respeitoso e melhor, mas não é isso que se vê. Se no inicio da novela fosse dito a grande parcela dos espectadores que o casal de maior destaque na trama seria gay e que no último capítulo haveria um beijo entre eles, possivelmente muitos não teriam assistido. Talvez os personagens fossem até incendiados logo no começo. Mas não sabendo, a chegar a este ponto, se surpreenderam torcendo para que isto acontecesse.
"Amor à vida" não foi de longe uma boa novela. Pecou pelo excesso de conteúdos mal desenvolvidos e principalmente quanto à abordagem pobre e equivocada de alguns temas importantes. No entanto, foi vitoriosa em um ponto: através da construção de personagens com apelo emotivo e forte empatia popular, proporcionou aproximação espontânea do público ao universo das relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo.
Essa conversa foi anterior ao tão esperado e comentado beijo. E foi por conta disso que decidi escrever antes mesmo de saber se ele aconteceria ou não. Isso porque, muito claramente, o beijo não é o mais valoroso nesse contexto. O beijo é um ponto de exclamação que encerra uma frase, que compõe um parágrafo, de um texto bem elaborado neste sentido e com uma importância ainda maior. O caso de amor entre dois personagens do mesmo sexo alcançou relevância e simpatia de forma altamente significativa, com expressiva representação na luta contra o preconceito, haja vista o interesse das pessoas sobre o desfecho da história, identificado através dos comentários em redes sociais e entre amigos, posicionando-se em maior valor e importância acima do casal protagonista.
Sim, fico feliz. Comemoro que este tabu arcaico tenha sido quebrado. Senti uma vontade terna de estar na casa de cada espectador que, no seio de sua família, na farra com os amigos ou no silêncio acolhedor de sua solidão, acompanhou um beijo leve de 5 segundos seguidos de dois selinhos sutis trocados pelo casal. No entanto, para muito além disso, a importância desse par na novela não pode ser resumida a isto. O beijo foi sim apenas a cereja de um bolo com ingredientes singulares em teledramaturgia. A relação de amor estabelecida entre Félix e Niko teve um efeito muito mais devastador do que um selar de lábios. Ao trazer para o horário nobre da emissora com maior audiência no país as desventuras amorosas de um casal gay, o autor, a direção da novela e principalmente os atores, encurtaram radicalmente as distâncias entre o real e o imaginário relacionado às posturas e ao modo de vida dos casais homossexuais na contemporaneidade.
Quando se tem amigos ou parentes que vivenciam relações homoafetivas, este reconhecimento é natural e gera aproximação. Quando o véu do preconceito, espesso que é, cega e confunde a visão, estabelece-se como fato o que é suposição, aumentando gradualmente e algumas vezes de forma irreversível as distâncias. Afunda-se em razões criadas para manter ativa a ignorância e o estranhamento. Daí engessam-se opiniões e prevalece a violência.
No entanto, quando a ignorância e desinformação são reduzidas, irremediavelmente se reduz o preconceito. Este foi o feito ímpar de "Amor à vida". Trazer para o campo da normalidade o que já é normal, porém não é visto como tal por uma parcela social desinteressada em compreender o que lhe soa diferente e por essa razão habitua-se a reproduzir falas e posturas que lhe convenham. Duas pessoas com seus defeitos e virtudes, vivências e anseios, traumas e esperanças, que se amam, vivendo as incertezas e confirmações do amor. Qual estranheza há nisso?
Uma forte questão relacionada à homofobia é a imediata associação ao que é sexual. Quando se escuta alguém dizer: “João é gay” ou “João namora José” é quase imediata a formação de imagens mentais deste casal em cenas íntimas tórridas. Daí, em muitos, a repulsa e estranheza. Diferente, nestas pessoas, de quando se ouve: “João namora Maria”, imagina-se o casal em situações românticas de companheirismo e plenitude.
A novela, popular que é, transcendeu a questão do gênero e inseriu gradativamente o romance de três casais gays de maneira que sexual não fosse regra. Uma movida pela paixão (Félix e Anjinho), outra pelo companheirismo abalado por uma traição (Niko e Eron) e uma última movida pela construção do amor e seus adornos tão comuns a qualquer cidadão enamorado, favorecendo a resignificação do que é uma relação homoafetiva no imaginário daqueles que por ignorância, por escolha, por preconceito, por ódio ou qualquer outro sentimento avesso à essas relações tem estabelecido como referência.
O primeiro olhar, o prematuro desinteresse, o reencontro, o inesperado interesse, o medo da não correspondência, a aproximação, a revelação e, por fim, (leia-se, começo), o enlace. Não seriam essas, a grosso modo, etapas de construção de um relacionamento, do amor? E por que seriam diferentes e alheios a esta rotina os homossexuais? Mostrar isso, cativar as pessoas, fazer com que elas se percebam envolvidas e em seguida torcendo para que este amor dê certo são, definitivamente, aspectos mais significativos que um beijo.
Honestamente, gostaria de ter tido tempo de ter feito essa reflexão em forma de texto antes do burburinho instantâneo que esta ação ocasionou. Mas de alguma forma, sim, foi importante acontecer agora também. Olhar para o beijo foi importante. Um marco televisivo na luta contra o preconceito e um acréscimo à autoestima homossexual, sem dúvidas. Mas, quando damos um passo para trás e nos afastamos um pouco mais da cereja, começamos a ver o bolo por inteiro, percebemos que a cereja é apenas um detalhe, um detalhe bonito... mas um detalhe. Principalmente quando o bolo tem um aspecto, sabor e presença tão inédito quanto inesquecível.
Ah, e o que minha avó achou do beijo? Eu não sei. Não falei com ela ainda. Mas isso não importa. Como ela mesma disse: “ importa o amor”. Falar mais o quê?
Fonte : © obvious: http://lounge.obviousmag.org/
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